NARCISO ACHA FEIO, TUDO AQUILO
QUE NÃO É ESPELHO
Para os gregos, o verbo SER tinha
uma importância e assumia quatro significados diferentes. Primeiramente, ele
indicava EXISTÊNCIA, exprimindo que determinada coisa existe. No sentido de
IDENTIDADE serve para identificar e/ou distinguir algo ou alguém em relação a
si mesmo e/ou aos outros. Há também o sentido de PREDICAÇÃO para atribuir
propriedade ou qualidade de determinado objeto ou alguém. Por fim, assume a
postura de VERIDATIVO, estabelecendo uma relação entre a verdade e o falso.
Contudo, estes significados não eram excludentes, pois indicavam uma noção de
unidade/totalidade. Não é difícil perceber que hoje não podemos usar este
conceito da mesma forma, isso porque numa sociedade fragmentada como a nossa, a
APARÊNCIA e os quinze minutos de fama têm mais valor do que a ESSÊNCIA.
Penso
que um mito em especial demonstra, em termos, a força da palavra SER. De acordo
com Ovídio, Narciso era um rapaz belo e os pais Cefiso e Liríope consultaram o
oráculo Tirésias para saber o destino do filho. A revelação foi a de que ele
teria uma vida longa, desde que não olhasse o próprio rosto. Ao crescer,
Narciso despertou amor tanto em homens quanto em mulheres, porém era orgulhoso
e arrogante. Diversas ninfas se apaixonaram pelo jovem, incluindo Eco que o
amava incondicionalmente. Desprezadas, elas pediram aos deuses uma punição e a
deusa Némesis o condenou a apaixonar-se pelo próprio reflexo. Encantado por sua
beleza refletida na água, Narciso deitou-se no banco do rio e definhou,
contemplando sua imagem. Depois de sua morte, ele é transformado em uma flor,
que não deixa de simbolizar a beleza, mas também o efêmero, o passageiro e
transitório.
Nesse
sentido, Narciso tem consciência de sua EXISTÊNCIA, mas ao se distinguir em
relação ao outro - IDENTIDADE - acaba enxergando apenas suas qualidades -
PREDICAÇÃO - tomando isso como a verdade única - VERIDATIVO. Não é gratuito que
a palavra grega NARKE significa entorpecido e está presente nos seus derivativos:
narciso, narcisismo ou narcótico. Dessa maneira, para os gregos, o mito de
Narciso simboliza a vaidade e a insensibilidade, na medida em que ele era
emocionalmente “entorpecido” as solicitações amorosas dos outros, que se
apaixonavam pela sua APARÊNCIA. No entanto, isso também nos mostra o drama da
individualidade que não compreende a profundidade do SER e a lição tirada deste
exemplo é a de que só existimos enquanto indivíduos quando tomamos consciência
de si mesmo e perante a si mesmo (lugar em que experimentamos todos os dramas),
tendo ainda como contraponto o outro.
Contudo,
por que mesmo tendo a explicação do verbo SER e a experiência passada através
do mito de Narciso, vivemos em uma sociedade cada vez mais individualista e
fragmentada? Será que em algum momento tivemos realmente uma
unidade/totalidade? E de que forma estas questões e relações deixaram de ser
uma preocupação do sujeito?
Sem
buscar explicações amplas para estas perguntas, uma direção está no que Freud
discorre no texto “Os três golpes ao amor próprio humano”. Para ele, algumas
descobertas podem ter significado uma investida rude contra a imagem que nós
fazemos de nós mesmos, provocando assim três feridas no ser humano.
O
primeiro golpe é o cosmológico, pois o homem acreditava que em seu mundo, a
terra era o centro do universo. Com as investigações de Copérnico e Galileu
comprova-se cientificamente que isto não é verdade, uma vez que ela gira em
torno do sol. Hoje, com os avanços tecnológicos na área da cosmologia estima-se
que há no universo um número aproximado de 100 a 200 bilhões de galáxias. Será
que estamos sós neste mundão de meu deus?
O
segundo golpe, é o biológico, pois no desenvolvimento da civilização, o homem
adquiriu uma posição dominante entre outras criaturas, colocando um abismo
entre a sua natureza e a dos animais. Mas Darwin põe fim a esta presunção ao
mostrar que o homem tem ascendência animal.
O
terceiro golpe é o de natureza psicológica e, segundo Freud, é o que mais fere.
Mesmo humilhado nas relações externas, o homem sentia-se superior dentro de sua
mente e na percepção interna, a consciência, fornece ao ego a informação de
todas as ocorrências importantes nas operações mentais. Assim, a vontade
dirigida por essas informações executa o que o ego ordena. Porém, na realidade
não é isso que acontece. Em muitas situações e circunstâncias, aparecem
pensamentos de súbito sem que possamos saber de onde eles vêm e sem que
possamos fazer algo para afastá-los. Portanto, reconhecer que nosso ego não é
senhor da própria casa destrói de vez o narcisismo humano.
Nesse
sentido, a dificuldade em conquistar esta unidade/totalidade do SER, talvez
resida no fato de que somos tomados por um forte egoísmo. Acreditamos que somos
únicos em um universo com bilhões de galáxias, acreditamos que somos superiores
as demais criaturas e ainda acreditamos que estamos no comando da nossa
vontade. Não enxergamos a nós mesmos e tampouco ao outro.
Tudo
isso nos leva ao MEDO. Deixamos de amar. Deixamos sonhos... Ficamos paralisados
no mundo e reclamamos do individualismo e da fragmentação do sujeito. Mas penso
que para retomar a ESSÊNCIA do SER é preciso VER e isso nos incomoda, desloca
nosso ponto de vista e abala nossas convicções. Clarice Lispector em seu livro
A paixão segundo G. H mostra um caminho para enfrentar esta jornada:
"Como é que
se explica que o meu maior medo seja exatamente em relação: a ser? e no entanto
não há outro caminho. Como se explica que o meu maior medo seja exatamente o de
ir vivendo o que for sendo? como é que se explica que eu não tolere ver, só porque
a vida não é o que eu pensava e sim outra - como se antes eu tivesse sabido o
que era! Por que é que ver é uma tal desorganização?"
Mas
nem todos gostam da desorganização. É mais fácil deixar de lado tudo aquilo que
nos incomoda, que nos apavora ou que nos dá medo. Para SER é preciso VER não
apenas o espelho, mas o que está em torno de mim. Para SER é preciso VER o
outro, algo muito bem dito por Caetano Veloso em sua música Sampa:
“Quando eu te encarei frente a
frente não vi o meu rosto
Chamei de mau gosto o que vi, de
mau gosto, mau gosto
É que Narciso acha feio o que não
é espelho
E à mente apavora o que ainda não
é mesmo velho
Nada do que não era antes quando
não somos Mutantes
E foste um difícil começo
Afasta o que não conheço”
Assim,
as consequências de não querer SER ou VER, talvez nos faça tristes, solitários,
neuróticos, histéricos, egoístas, perdidos... Estamos num mundo com vários
outros EUS que se ignoram. Mas na verdade, sabemos que se isso acontece é
porque, bem lá no fundo, já entendemos o fato intolerável de que somos
dispensáveis. Ninguém é especial e qualquer um pode ser substituído.
Protegemo-nos
de tudo e de todos, mas, no final, como destaca Freud, em seu texto “À guisa de
introdução ao narcisismo”, “precisamos começar a amar para não adoecer, e
iremos adoecer se, em consequência de impedimentos, não pudemos amar.”
Amar é a solução? Não sei.
Mas que tal começarmos quebrando o
espelho?
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