domingo, 7 de fevereiro de 2016

NARCISO ACHA FEIO, TUDO AQUILO QUE NÃO É ESPELHO

   Para os gregos, o verbo SER tinha uma importância e assumia quatro significados diferentes. Primeiramente, ele indicava EXISTÊNCIA, exprimindo que determinada coisa existe. No sentido de IDENTIDADE serve para identificar e/ou distinguir algo ou alguém em relação a si mesmo e/ou aos outros. Há também o sentido de PREDICAÇÃO para atribuir propriedade ou qualidade de determinado objeto ou alguém. Por fim, assume a postura de VERIDATIVO, estabelecendo uma relação entre a verdade e o falso. Contudo, estes significados não eram excludentes, pois indicavam uma noção de unidade/totalidade. Não é difícil perceber que hoje não podemos usar este conceito da mesma forma, isso porque numa sociedade fragmentada como a nossa, a APARÊNCIA e os quinze minutos de fama têm mais valor do que a ESSÊNCIA.
   Penso que um mito em especial demonstra, em termos, a força da palavra SER. De acordo com Ovídio, Narciso era um rapaz belo e os pais Cefiso e Liríope consultaram o oráculo Tirésias para saber o destino do filho. A revelação foi a de que ele teria uma vida longa, desde que não olhasse o próprio rosto. Ao crescer, Narciso despertou amor tanto em homens quanto em mulheres, porém era orgulhoso e arrogante. Diversas ninfas se apaixonaram pelo jovem, incluindo Eco que o amava incondicionalmente. Desprezadas, elas pediram aos deuses uma punição e a deusa Némesis o condenou a apaixonar-se pelo próprio reflexo. Encantado por sua beleza refletida na água, Narciso deitou-se no banco do rio e definhou, contemplando sua imagem. Depois de sua morte, ele é transformado em uma flor, que não deixa de simbolizar a beleza, mas também o efêmero, o passageiro e transitório.
   Nesse sentido, Narciso tem consciência de sua EXISTÊNCIA, mas ao se distinguir em relação ao outro - IDENTIDADE - acaba enxergando apenas suas qualidades - PREDICAÇÃO - tomando isso como a verdade única - VERIDATIVO. Não é gratuito que a palavra grega NARKE significa entorpecido e está presente nos seus derivativos: narciso, narcisismo ou narcótico. Dessa maneira, para os gregos, o mito de Narciso simboliza a vaidade e a insensibilidade, na medida em que ele era emocionalmente “entorpecido” as solicitações amorosas dos outros, que se apaixonavam pela sua APARÊNCIA. No entanto, isso também nos mostra o drama da individualidade que não compreende a profundidade do SER e a lição tirada deste exemplo é a de que só existimos enquanto indivíduos quando tomamos consciência de si mesmo e perante a si mesmo (lugar em que experimentamos todos os dramas), tendo ainda como contraponto o outro.
   Contudo, por que mesmo tendo a explicação do verbo SER e a experiência passada através do mito de Narciso, vivemos em uma sociedade cada vez mais individualista e fragmentada? Será que em algum momento tivemos realmente uma unidade/totalidade? E de que forma estas questões e relações deixaram de ser uma preocupação do sujeito?
   Sem buscar explicações amplas para estas perguntas, uma direção está no que Freud discorre no texto “Os três golpes ao amor próprio humano”. Para ele, algumas descobertas podem ter significado uma investida rude contra a imagem que nós fazemos de nós mesmos, provocando assim três feridas no ser humano.
   O primeiro golpe é o cosmológico, pois o homem acreditava que em seu mundo, a terra era o centro do universo. Com as investigações de Copérnico e Galileu comprova-se cientificamente que isto não é verdade, uma vez que ela gira em torno do sol. Hoje, com os avanços tecnológicos na área da cosmologia estima-se que há no universo um número aproximado de 100 a 200 bilhões de galáxias. Será que estamos sós neste mundão de meu deus?
  O segundo golpe, é o biológico, pois no desenvolvimento da civilização, o homem adquiriu uma posição dominante entre outras criaturas, colocando um abismo entre a sua natureza e a dos animais. Mas Darwin põe fim a esta presunção ao mostrar que o homem tem ascendência animal.
   O terceiro golpe é o de natureza psicológica e, segundo Freud, é o que mais fere. Mesmo humilhado nas relações externas, o homem sentia-se superior dentro de sua mente e na percepção interna, a consciência, fornece ao ego a informação de todas as ocorrências importantes nas operações mentais. Assim, a vontade dirigida por essas informações executa o que o ego ordena. Porém, na realidade não é isso que acontece. Em muitas situações e circunstâncias, aparecem pensamentos de súbito sem que possamos saber de onde eles vêm e sem que possamos fazer algo para afastá-los. Portanto, reconhecer que nosso ego não é senhor da própria casa destrói de vez o narcisismo humano.
  Nesse sentido, a dificuldade em conquistar esta unidade/totalidade do SER, talvez resida no fato de que somos tomados por um forte egoísmo. Acreditamos que somos únicos em um universo com bilhões de galáxias, acreditamos que somos superiores as demais criaturas e ainda acreditamos que estamos no comando da nossa vontade. Não enxergamos a nós mesmos e tampouco ao outro.
   Tudo isso nos leva ao MEDO. Deixamos de amar. Deixamos sonhos... Ficamos paralisados no mundo e reclamamos do individualismo e da fragmentação do sujeito. Mas penso que para retomar a ESSÊNCIA do SER é preciso VER e isso nos incomoda, desloca nosso ponto de vista e abala nossas convicções. Clarice Lispector em seu livro A paixão segundo G. H mostra um caminho para enfrentar esta jornada:

"Como é que se explica que o meu maior medo seja exatamente em relação: a ser? e no entanto não há outro caminho. Como se explica que o meu maior medo seja exatamente o de ir vivendo o que for sendo? como é que se explica que eu não tolere ver, só porque a vida não é o que eu pensava e sim outra - como se antes eu tivesse sabido o que era! Por que é que ver é uma tal desorganização?"

    Mas nem todos gostam da desorganização. É mais fácil deixar de lado tudo aquilo que nos incomoda, que nos apavora ou que nos dá medo. Para SER é preciso VER não apenas o espelho, mas o que está em torno de mim. Para SER é preciso VER o outro, algo muito bem dito por Caetano Veloso em sua música Sampa:

“Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto
Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto
É que Narciso acha feio o que não é espelho
E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho
Nada do que não era antes quando não somos Mutantes
E foste um difícil começo
Afasta o que não conheço”

   Assim, as consequências de não querer SER ou VER, talvez nos faça tristes, solitários, neuróticos, histéricos, egoístas, perdidos... Estamos num mundo com vários outros EUS que se ignoram. Mas na verdade, sabemos que se isso acontece é porque, bem lá no fundo, já entendemos o fato intolerável de que somos dispensáveis. Ninguém é especial e qualquer um pode ser substituído. 
   Protegemo-nos de tudo e de todos, mas, no final, como destaca Freud, em seu texto “À guisa de introdução ao narcisismo”, “precisamos começar a amar para não adoecer, e iremos adoecer se, em consequência de impedimentos, não pudemos amar.”
   Amar é a solução? Não sei.

   Mas que tal começarmos quebrando o espelho?

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