terça-feira, 29 de maio de 2012

Como consegui um autógrafo de Antonio Candido

A primeira vez que li Antonio Candido foi em 1998, no início da minha graduação, para o curso de Introdução aos Estudos Literários. A professora Iná Camargo Costa indicou o livro O estudo analítico do poema e disse ainda, não sei ao certo se com essas palavras, que se alguém quisesse se dedicar aos estudos das letras deveria montar uma biblioteca básica e não uma xeroteca. Essa lição, eu consegui aprender e até procuro difundi-la entre alguns alunos e colegas. Hoje, em minha biblioteca básica encontram-se obras essenciais para minha formação, tenho por ela certo apreço e pensando melhor posso até dizer que de básica não tem nada, pois é a minha biblioteca. 

No dia 22.08.2000, ainda guardo a nota fiscal, entrou nela o livro Vários Escritos. Em Novembro do mesmo ano houve uma exposição em comemoração ao centenário da morte de Eça de Queirós no Memorial da América Latina. Fiquei sabendo do evento com antecedência e descobri que os palestrantes, João Alexandre Barbosa, Carlos Reis e Benjamim Abdala Junior iriam fazer uma homenagem ao mestre Candido. Não pensei duas vezes e segui para lá com o livro novo em mãos para conseguir um autógrafo. A palestra teve uma qualidade primorosa, a exposição belíssima e bem organizada pela Biblioteca Nacional de Portugal ganhou destaque e o coquetel, regado a vinho do porto, queijos e bacalhau, fechou a noite com chave de ouro. 

Lembro-me de que após a fala dos palestrantes o professor Antonio Candido conversava com um grupo de pessoas que o cumprimentavam. Fiquei ao lado, um pouco afastado e quando ficou sozinho me aproximei, olhei para o alto e percebi que a grandeza não era apenas de conhecimento. Disse que era estudante de letras na USP que admirava muito o seu trabalho cujos estudos estavam contribuindo muito para minha formação. Estendi o livro e lhe pedi um autógrafo. 

Ao reler o seu ensaio O direito a literatura não sinto tanto vergonha do meu ato de tietagem, confesso que até gosto de mostrar para alguns colegas o meu livro autografado por Antonio Candido. Um objeto de fetiche e que causa uma pontinha de inveja neles, da para perceber no olhar. O que me levou a fazer isso? Acredito que é o fato de gostar de literatura e admirar quem estude a literatura com tanta paixão. Pensar nela como um direito básico não é tarefa fácil, no entanto Candido estabelece essa relação com tanta clareza que fica difícil e poderia dizer até impossível não concordar com suas palavras. 

Os direitos, principalmente os humanos, segundo ele “é reconhecer que aquilo que consideramos indispensável para nós é também indispensável para o próximo” e na observação que faz entre os “bens compressíveis” e “bens incompressíveis” ele mostra que “cada época e cada cultura fixam os critérios de incompressibilidade.” Concordo que alimento, roupa, casa são obviamente bens incompressíveis e concordo mais ainda que “são bens incompressíveis não apenas os que asseguram sobrevivência física em níveis decentes, mas os que garantem a integridade espiritual.” E é nessa integridade espiritual que entra a literatura e com ela é que devemos alimentar a alma, as nossas e as dos nossos iguais. 

Carlos Drummond de Andrade escreveu no poema Nosso Tempo do livro A rosa do povo que “Este é tempo de partido/ tempo de homens partidos”. Parece que tudo está em fragmentação, é o reflexo de um mundo em que Fernando Pessoa enxerga vários “eus” e a incerteza das coisas “Tudo é incerto e derradeiro./ Tudo é disperso, nada é inteiro.” Dessa maneira, a poesia nos mostra a barbárie, mas também nos mostra a beleza das coisas. Tendemos a ser abraçados pelo pessimismo, contudo é na literatura que muitas vezes enxergamos uma forma de resistência. 

Lembro-me também de que nessa jornada para conseguir o almejado autógrafo, fui acompanhado de três alunos de um curso supletivo em que lecionava. Não recordo o nome de dois deles e nem sei o rumo que deram em suas vidas, mas um em especial ficou na memória: Vanilda. Uma senhora simpática, casada, com dois filhos sendo que um tinha a minha idade, uma senhora com uma força de vontade admirável. Certa vez eu recomendei para a turma Vidas Secas de Graciliano Ramos. 

Teríamos um questionário sobre o livro, prova e um debate. Pensei que eu daria uma aula, mas acabei aprendendo muito mais. Ela: nordestina, sem pai, passou fome, várias necessidade e migrou com a mãe e os irmãos para São Paulo. Tinha vivido aquilo que Graciliano representou em seu texto e o mais importante de tudo, ela me agradeceu por ter recomendado aquele livro. Dois anos depois a encontrei na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Havia entrado em Pedagogia, me abraçou e agradeceu outra vez. 

Candido diz que “os mesmos meios que permitem o progresso podem provocar a degradação da maioria” e isso é um fato. Pensar em uma sociedade igualitária é utopia ou excesso de otimismo, porém se esforçar para torná-la um pouco mais justa ainda está na esfera do real, ou seja, é algo possível. O mestre Candido disse, num período complicado de nossa história política, que “cada um tem as suas armas, a nossa é esclarecer o pensamento e pôr ordem nas idéias” creio na literatura ajudando nesse processo. Para mim a Vanilda é um exemplo disso. 

O professor Candido ao mostrar que a literatura é um direito inalienável, com o devido respeito, pode ser até canonizado, pois conforme Clarice Lispector escreveu certa vez, “quem escreve ou pinta ou ensina ou dança ou faz cálculos em termos de matemática, faz milagre todos os dias.” O otimismo do professor não é gratuito e tampouco demagógico, por isso entendo porquê pedi o seu autógrafo. Ele pegou o livro e disse que se sentia feliz em saber que o seu trabalho estava contribuindo em minha formação: “Para Eder Rodrigues, lembrança cordial do Antonio Candido”

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